Sobre a boate Kiss

"Hoje é um desses dias que você acorda com a cabeça pesada e o coração penoso. Meu pensamento não estava aqui, no 2º andar do número 42 de uma rua lisboeta, mas nas 242 famílias que ainda choram uma perda que eu nunca serei capaz de compreender.

Grande parte dos meus amigos são de Santa Maria, e me comovo ao ver tantas mensagens de solidariedade na minha timeline. Outra parte talvez não saiba do que eu esteja falando. Há 2 anos, a cidade onde eu morava sofreu com uma grande tragédia, que tirou a vida de 242 jovens em uma boate.

O que mais choca em uma tragédia é que ela soa intangível. Ela parece uma coisa abstrata, surreal, que nunca atingirá você ou aqueles que você ama. E então ela vem, como um tremor que balança teu mundo e vira ele do avesso. Vem e, mesmo não te acertando, te dilacera. Te deixa em pedaços.

O que mais surpreende em uma tragédia é que, depois do choque, vem uma outra onda: solidariedade. Vem grande e reconfortante tomar conta daquele pedaço de chão devastado. Vem em forma de médicos, psicólogos, religiosos, gente comum. Vem nos olhares de cumplicidade trocados nas ruas, vem no silêncio respeitoso que cobriu aquela cidade.

Lembro-me que senti essa urgência em ajudar. Em fazer algo por aquelas pessoas que sentiam uma dor que eu não conseguia sequer imaginar. Eu, gente comum, não pude fazer muito, mas passei a madrugada do dia 28 no Farrezão, servindo água e comida às famílias que ainda velavam seus filhos. Eram poucos, cerca de 8 ou 9 famílias. Eram pais e avós chorando pela inversão da ordem natural da vida.

Quando um senhor que velava seu filho aceitou a água que lhe ofereci perguntei se ele queria alguma coisa. Ele olhou pra mim, segurou na minha mão e me disse: eu quero meu filho de volta. Até hoje, quando penso nesse momento, meus olhos se enchem d'água. Eu nunca vou esquecer a expressão no olhar daquele homem de meia idade, do total desamparo que eu via naqueles olhos azuis. Eu não encontrei palavras para responder. Não encontrei, em todo o vocabulário, uma só coisa que eu pudesse dizer que mudaria aquele olhar.

Então, eu o abracei. Senti ele me abraçar de volta e logo meus ombros ficaram molhados pelas lágrimas daquele pai. Fiquei um longo tempo ali, dando a única coisa que eu tinha pra dar (e que era ao mesmo tempo tudo que havia em mim): carinho e amor.

O que quero fazer por Santa Maria hoje é o mesmo. Quero te abraçar, minha cidade querida. Quero olhar nos teus olhos e encontrar alí a esperança, a força e a determinação. Quero te abraçar por todo esse dia, e no fim, sentir que algo mudou em você.

Que as nossas 242 estrelas brilhem sempre no céu dessa cidade."

Eduarda Petry - Lisboa, Portugal

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